05 fevereiro 2006

207) Clash of civilization (this time for real...)


Parece que o conflito teorizado por Samuel Huntington passou da fase latente para o estado de guerra larvar: mais jornais ocidentais publicam as charges veiculadas num jornal dinamarquês e o debate se instalou de vez sobre a liberdade de expressão e o respeito às sensibilidades religiosas.

Mas o que houve, finalmente?
O problema começou, há vários meses, com duas polêmicas charges de Maomé publicadas originalmente num jornal dinamarquês e que têm gerado protestos em todo o mundo islâmico.

Num dos desenhos, Maomé pede aos terroristas islâmicos que parem com os atentados, porque já não há virgens suficientes no Paraíso. No outro, o profeta aparece com uma bomba no turbante.
Confesso que ainda não vi essas caricaturas: não tive tempo de buscar, nem tenho interesse real em vê-las. Meu interesse aqui é outro: discutir os limites recíprocos entre liberdade de expressão e manifestação de sentimento religioso.

Jornais ocidentais publicam dezenas de charges, ironizando prelados católicos, criticando padres de comportamento duvidoso e fazendo troça com o próprio Papa. Nada disso gera comoção ou tumulto, no máximo algum protesto localizado.

No mundo ocidental, em geral, é assim: a liberdade de expressão é praticamente absoluta, consituindo um dos valores fundamentais de seus regimes democráticos, algo praticamente inexistente em vários países islâmicos. Em caso de abuso desse direito, os atingidos têm também o direito de buscar justiça nos tribunais.

Os muçulmanos que se sentiram ofendidos dizem que a religião islâmica proibe a reprodução pictorial do profeta e de qualquer outra forma de vida. Dizem que não se pode reproduzir uma criação de Alá.

Parece-me que existe aqui um problema real de conflito de civilização, mas ele não se dá entre o islâmismo e as demais correntes religiosas existentes no mundo, e sim dentro da própria civilização islâmica. Daí o singular, utilizado em meu título, diferente do conceito no plural empregado por Huntington.

Parece evidente que a arte pictórica existia antes da criação da religião islâmica, historicamente datada em torno do século VII da era cristã. Ela continuou a existir durante a vida do profeta Maomé e mesmo depois que seus ensinamentos foram propagados, sendo exercida, por exemplo, em sociedades islamizadas como a Pérsia, que cultivou a arte pictórica dentro da religião islâmica.
É bem verdade que muitos desses desenhos e pinturas tiveram depois as faces do profeta ou de outros personagens humanos apagadas dessas obras de arte, como vemos em muitas obras de arte de museus ocidentais e mesmo em museus de sociedades islâmicas. Trata-se de um esforço de "descontruir" obras de arte feitas dentro de sociedades islâmicas, por alguns intérpretes zelosos de alguns preceitos do Corão.

Se o sentimento religioso dos muçulmanos impede a reprodução de personagens humanos (e também de plantas e animais) isto deve ser considerado uma particularidade de sua religião, nos lugares nos quais ela é estritamente aplicada, mas obviamente esse tipo de prática não pode ter validade universal.

Aliás a proibição de reprodução de seres humanos, assim como de quaisquer outros seres vivos, atua, em minha opinião, como um sério impedimento ao desenvolvimento das ciências naturais (biológicas em especial), dificultando a apreensão de disciplinas científicas que se apoiam na reprodução de corpos e partes de corpos de seres vivos para o aprendizado de sua manipulação (para fins médicos e econômicos).

Trata-se, ao meu ver, de um grave conflito – existem outros, mas não pretendo agora debruçar-me sobre eles – que divide as sociedades islâmicas, internamente e em relação a outras sociedades humanas. Uma interpretação rigorosa de determinadas preceitos, ou de fato a ausência mesmo de possibililidade de interpretação – aquilo que na tradição cristã é conhecido por “exegese” –, dificulta a modernização das sociedades islâmicas e o seu relacionamento com as demais sociedades humanas, aderentes a outras correntes religiosas.

Esse problema terá de ser resolvido pelos próprios muçulmanos, uma vez que a origem do problema – ou seja, o conjunto de proibições – deriva de sua própria forma de encarar a religião, e não decorre do comportamento de outras crenças religiosas.

Quanto às sensibilidades religiosas, pode-se admitir que um cristão aderente se sinta ofendido por alguma charge ironizando Cristo na cruz, por alguma caricatura maldosa de padres “desviantes”, mas não se tem notícia de redações de jornais incendiadas por isso, ou de assassinatos de caricaturistas por suposta ofensa aos “sentimentos cristãos”. Mas, já tivemos exemplos de ocidentais assassinados por fundamentalistas islâmicos – um último eloquente exemplo foi o de um cineasta holandês, Theo Van Gogh, por ter feito um documentário sobre práticas costumeiras em algumas sociedades islâmicas – como protesto contra um suposto atentado a “valores islâmicos”.

Quer me parecer que estamos, de fato, em face de um grave problema civilizatório...

Post scriptum em 6 Fev 06: Tendo em vista que o site original de publicação das charges foi descontinuado, um outro site ofereceu-se para mantê-los on-line. Sem qualquer desejo de ofender ninguém, e tendo verificado sua relativa inocuidade, indico aqui o link de acesso a essas charges.