18 fevereiro 2006

224) A arte de enjaular as religiões...


Não, eu não tenho a receita, mas o comentarista abaixo, do site No Minimo, Pedro Doria, diz coisas sensatas, com uma linguagem nem sempre politicamente correta, sobre as religiões em geral, e sobre o Islã em particular.
Não endosso todas as suas opiniões, e teria mesmo comentários de natureza "antropológica" ou "sociológica" a agregar, mas acho que ele tem coisas inteligentes a expressar e por isso transcrevo aqui sua coluna no NO Mínimo, de 18 de fevereiro de 2006.

O Islã é de guerra
Pedro Doria
18.02.2006

Nos primeiros dias após o Onze de Setembro, imperou a confusão. Ali naquela primeira semana, Osama bin Laden foi revelado mandante do crime, apontado entre os Talibãs afegãos e a operação de diplomacia e guerra teve início. Hoje chamamos de Guerra contra o Terror – mas o primeiro nome que teve foi Cruzada contra o Terror. É que algum gênio esqueceu o sentido original da palavra Cruzada. Como não se tratava de uma guerra entre civilizações, o presidente norte-americano foi à televisão e disse que "o Islã é uma religião de paz" e mudou o nome para guerra.

O problema é que o Islã não é uma religião de paz. Nunca foi em sua história, tampouco é agora. Não é uma característica intrínseca do Islã, um defeito genético particular: isto tem a ver com religiões. Religiões não são de paz. Os católicos moveram as Cruzadas sangrentas e queimaram muita gente na fogueira; os Protestantes também queimaram muita gente entre a Alemanha e os EUA. É só ouvir um único discurso do rabino Ovadia Yosef, de Israel, para saber o que um judeu religioso em fúria e com poder poderia fazer. Aliás, não é hábito do Dalai Lama contar sobre o sistema escravagista e bárbaro que a teocracia tibetana mantinha antes da igualmente bárbara invasão maoísta. Religiões derramam sangue.

O que acontece, certamente, é que em determinadas fases da história elas ficam mais calmas – ou melhor, a população ao redor gera anticorpos, fica intolerante ao barbarismo. A Igreja Católica não abandonou a Inquisição porque quis. Foi forçada a isto porque a população começou a se afastar dela.

Governos laicos ou religiosos, na Ásia Central, Oriente Médio e Norte da África têm se mostrado permissivos. Mulás, xeques – até aiatolás no caso iraniano – têm incrível liberdade para condenar alguém à morte. E um incrível número de pessoas considera que uma ordem destas tem valor de lei. Então, mais do que um exercício de liberdade de expressão, uma fatwa é um ato legislativo, uma ordem judicial que, naturalmente, opõe-se à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um líder religioso que condene alguém à morte é um líder fora do sistema de legalidade.

Incrivelmente, o crime que atiça mais a fúria dos religiosos do Islã é o crime de opinião, de manifestar uma idéia. Fora as diferenças óbvias na quantidade de talento, qual a diferença entre a blasfêmia de Salmon Rushdie e a dos cartunistas dinamarqueses? Nenhuma. E, coerentemente, cartunistas e escritor foram condenados à morte. Quem decidiu considerar diferentes os casos são todos os que, pós Onze de Setembro, chegaram à conclusão de que certas coisas a respeito do Islã não podem ser ditas.

O Islã é uma religião organizada de tal forma, hoje, que líderes religiosos podem sair condenando qualquer um à morte, ou ao apedrejamento, ou a chibatadas, e ninguém questiona. Isso não é liberdade de culto, é barbarismo. Há um contexto, claro que há.

Os árabes foram conquistadores por boa parte de sua história e, quase sempre, bateram de frente com cristãos conquistadores de origem européia. A experiência do colonialismo árabe no subcontinente indiano é igualzinha à experiência africana com a metrópole européia. Imperialismo é igual em toda parte. Só que houve um momento em que o império árabe ruiu e os árabes viraram, eles próprios, colonos. Os traços de fronteiras impostos por Inglaterra e França no Oriente Médio, ao longo do século 20, são canhestros.

Pior, provavelmente, é a escolha de líderes para cada um destes países feita por europeus e, após a Segunda Guerra, por norte-americanos. Entre ditadores laicos e teocratas, acaba tudo mais ou menos igual. Os ditadores laicos, seja no Iraque, seja no Egito, ou Síria – onde for – acabam fechando os olhos para o que dizem os líderes religiosos porque não querem ficar mal com o povo. Os religiosos fazem o que acham que têm de fazer.

É claro que há um bocado de demagogia em todo o processo – usar a religião e um inimigo externo para entorpecer o povo, fazer com que esqueça de suas próprias agruras, não tem nada de novidade. Por outro lado, olhar com desconfiança para EUA e Europa não tem nada de artificial. A experiência que todo o povo do Oriente Médio tem com os estrangeiros em sua terra é ruim. Se os demagogos exploram o desejo de um inimigo externo por um lado, o inimigo externo não é artificial.

Só que não basta ter razão. Muito se falou da falta de bom senso dos editores dinamarqueses. Nada se falou da falta de bom senso dos muçulmanos, mundo afora, que andaram pelas ruas matando-se uns aos outros, incendiando prédios. Por quê? Não são crianças. Cobrar bom senso dos dinamarqueses para não provocar é mais ou menos como dizer que eles, dinamarqueses, que são adultos, deveriam agir responsavelmente já que as crianças não podem. É como os jesuítas olhavam os índios. Ou seja, cobrar bom senso dos dinamarqueses é pensar de forma imperialista.

No mundo real, não há crianças. Há adultos, todos capazes de exercitar bom senso. E há um mundo no qual todos vivemos, cada qual com o seu quinhão de herança cultural, cada um absolutamente capaz de compreender e até de admirar os costumes alheios. Não basta dizer que a Guerra do Iraque é um despropósito, embora seja. Os erros não são apenas norte-americanos. Os críticos, culpadíssimos, costumam dizer que ninguém deixa espaço para que muçulmanos moderados apareçam.

Quem não deixa espaço? Na Europa eles aparecem, embora raramente. Até porque, como todas as outras pessoas, a maioria dos muçulmanos moderados carregam suas religiões como não mais que um detalhe de suas vidas. Se estes mesmos moderados não aparecem na Arábia Saudita, ou na Síria, ou no Irã, não é por culpa dos EUA, ou da França, ou de Israel. Quem não abre espaço são os fundamentalistas ou os ditadores – ou, o que é mais comum, ambos.

Toda mulher muçulmana tem o direito de usar a burka se quiser. Mas o problema é que, em muitos países, elas não têm o direito de não usá-la. Toda mulher muçulmana tem o direito de casar com quem seu pai escolher. E se ela preferir escolher por si? E se o marido escolher tratá-la a chibatadas? Toda religião, se absoluta, é arcaica. Em algumas partes do mundo, conseguimos enjaular as religiões, tirar delas o grosso de seu poder político. Em outras partes, não conseguimos. O Islã não precisa acabar. Precisa é ser enjaulado de forma que só quem o siga é quem tem a escolha de segui-lo ou não.

O que surpreende, muitas vezes, é gente à esquerda com simpatia pelo Hamas. Defendendo Saddam Hussein. Achando que o governo iraniano tem muitas razões. É o raciocínio torpe de que o inimigo de meu inimigo é amigo. Só que não é. O Hamas ou a atual liderança iraniana são forças reacionárias, machistas. Estão à direita de boa parte dos Republicanos nos EUA. São eleitos, também, então que se procure uma conversa, e conversa é possível sempre. Para isto existe liberdade de expressão: para que as pessoas possam conversar, deixar sempre muito claro onde estão para aí encontrar algum tipo de forma de coabitação pacífica.

A coabitação pacífica é possível. Mas de que cada um está disposto a abrir mão para que viver nos seja agradável a todos? Não se desenhar mais Maomé? É razoável. Não dizer mais que o Islã, hoje, é assassino? Talvez. Deixar que, entre eles, se matem? Desde que seja entre eles. Que proíbam? Que não tenham mais música? Que usem escravos? Crianças escravas? Que matem mulheres por ciúmes? São extremos, claro. Isto não se dá em todo país muçulmano e o cristianismo conviveu até há bem pouco tempo com o mesmo grau de barbárie.

Ainda assim, se nos calamos por conta dos protestos, com que direito nos denominamos civilizados? Daqui de baixo, não parece que os dinamarqueses perderam o bom senso. Quem se mata por caricaturas é que perdeu.
[13 comentários]

E-mail do autor: pdoria@nominimo.ibest.com.br
(Texto localizado neste link)

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

"Religiões não são de paz", "Religiões derramam sangue" - Ufa! Que alívio! Basta então extinguir todas as religiões para que enfim vivamos todos em absoluta paz. Stálin, ex-seminarista, e Hitler, ex-católico, confirmaram o que havia dito Montesquieu, "só uma coisa pode opor-se à vontade dos déspotas: a religião", na medida em que ambos tinham religião própria, a religião política de adoração ao Estado, e não admitiam concorrência.

sábado, fevereiro 18, 2006 8:20:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Surpreendente a seguinte passagem :"O que surpreende, muitas vezes, é gente à esquerda com simpatia pelo Hamas. Defendendo Saddam Hussein. Achando que o governo iraniano tem muitas razões. É o raciocínio torpe de que o inimigo de meu inimigo é amigo. Só que não é. O Hamas ou a atual liderança iraniana são forças reacionárias, machistas. Estão à direita de boa parte dos Republicanos nos EUA." Ô,amigo, a esquerda que você tem na cabeça ainda é a esquerda mitológica, aquela que está sempre do lado do bem por mais maldades que seja capaz de fazer ou de apoiar.É um sintoma daquilo que Roger Scruton chamou, mui apropriadamente, de assimetria moral.Pois a esquerda histórica sempre apoiou o que de mais reacionário pode existir neste mundo de meu Deus, bastando que isso lhe parecesse suficiente para "destruir a burguesia", o "imperialismo" (dos outros, é claro) e promover a tal "justiça social". E sempre chamando "os outros" de reacionários, imperialistas...

domingo, fevereiro 19, 2006 12:08:00 PM  

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