276) Tristeza educacional
Apenas transcrevendo...
Eleitores, por favor, leiam este artigo
ALI KAMEL
O Globo, 21 de março de 2006
De um tempo para cá, é comum ouvir que o problema brasileiro na educação não é dinheiro. O número mais citado é o volume de recursos investidos na educação pelo setor público (municipal, estadual e federal) como relação do PIB: o Brasil não estaria longe das maiores potências do planeta ao investir 4%. De fato, o estudo “Education at a Glance, 2005”, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostra que esse investimento é da ordem de 4,4% na Alemanha, 5,3% nos EUA, 4,4% na Austrália, 4,6% na Itália, 4,6% na Holanda e de 5,1% na média de todos os países da OCDE.
Para reforçar a tese de que investimos o necessário, passaram a nos comparar aos países que, com mais êxito, ultrapassaram a barreira do desenvolvimento com investimentos pesados em educação: a Coréia investe 4,2% do PIB, a Irlanda, 4,1%, a Espanha, 4,3%. Mesmo em relação aos nossos vizinhos latino-americanos, não fazemos feio: a Argentina gasta 3,9% de seu PIB com educação, o Chile, 4%, o México, 5,1%. Estamos, portanto, na média, seja qual for o parâmetro.
Mas os números enganam.
Parece óbvio, mas ninguém sublinha o fato de que investimentos em educação como proporção do PIB dizem pouco quando não consideramos o tamanho do PIB e o número de estudantes atendidos. Imaginemos dois países. O primeiro tem um PIB enorme e poucos estudantes; o segundo tem um PIB pequeno e milhões de estudantes. Os dois países podem investir igualmente 4% do PIB, mas, certamente, no primeiro país, os alunos terão ao seu dispor muito mais recursos. Quando esses dados são levados em conta, a posição do Brasil no ranking de países é vexatória.
Aqui, ainda segundo dados da OCDE, o investimento por aluno na primeira fase do ensino fundamental é de US$ 842 por ano; na segunda fase, é de US$ 913; e, no ensino médio, de US$ 1.008. Façamos as mesmas comparações do primeiro parágrafo. Na Alemanha, os números são, respectivamente, US$ 4.537, US$ 5.667 e US$ 9.835. Nos EUA, US$ 8.049, US$ 8.669 e US$ 9.007. Na Austrália, US$ 5.169, US$ 7.063 e US$ 7.908. Nos países da OCDE, em média, US$ 5.313, US$ 6.089 e US$ 7.121. Na comparação com aqueles países que venceram os entraves do desenvolvimento, nossa situação continua trágica. Na Coréia, os números são US$ 3.553, US$ 5.036 e US$ 6.747. Na Irlanda, US$ 4.180, US$ 5.698 e US$ 5.758. Na Espanha, US$ 4.592, para a primeira fase do ensino fundamental, e US$ 6.010, tanto para a segunda fase do ensino fundamental como para o ensino médio. Nada melhora quando nos comparamos aos nossos vizinhos. Na Argentina, os valores são US$ 1.241, US$ 1.286 e US$ 2.883. No Chile, US$ 2.211, US$ 2.217 e US$ 2.387. No México, US$ 1.467, US$ 1.477 e US$ 2.378.
Investir a mesma porcentagem do PIB em educação diz pouco, portanto.
Não se trata sequer de dizer que a comparação é indevida porque nosso custo de vida difere dos outros países: porque, na comparação com os nossos vizinhos, continuamos a perder feio no ensino básico.
No ensino superior, a situação se inverte: nós gastamos despudoradamente em excesso. No Brasil, gasta-se por aluno o equivalente a US$ 10.361 ao ano. Na Alemanha, US$ 10.999; na Austrália, US$ 12.416; e na média dos países da OCDE, US$ 10.655. Na Coréia, o custo por aluno universitário é de US$ 6.236; na Irlanda, US$ 9.808; na Espanha, US$ 8.020. Se a comparação for com os nossos vizinhos, os números são os seguintes: na Argentina, US$ 3.235; no Chile, US$ 7.023, no México, US$ 6.074.
Por que digo que há excesso? Porque, no Brasil, a relação entre o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a respectiva população de estudantes é escandalosa. Na maior parte dos países, o montante de verbas destinadas às universidades excede a proporção de alunos nelas inscritos. Na média, nos países da OCDE, 15% de todos os alunos estão nas universidades, mas o ensino superior abocanha 24% do total de verbas destinadas à educação. É normal: o ensino superior é mesmo mais caro. No Brasil, porém, vivemos um descalabro: os alunos inscritos em universidades somam apenas 2% do total de alunos, mas o ensino superior fica com 20% de todas as verbas aplicadas em educação. Não há nada nem de longe parecido em qualquer um dos países aqui mencionados.
Diante desses números, entende-se melhor por que as nossas escolas públicas do ensino fundamental não têm bibliotecas, laboratórios de ciências, laboratório de informática, acesso à internet. Entende-se também porque o professorado é uma classe cada vez menos prestigiada, que recebe um salário indigno, o que tira dele inclusive as condições de se aperfeiçoar. Entende-se fundamentalmente por que estamos perdendo a corrida para superar a pobreza e alcançar o desenvolvimento.
Mas nosso problema, de fato, não é falta de recursos, mas falta de prioridade. Repito aqui, como num mantra, o que venho escrevendo: o governo federal quer gastar este ano R$ 8 bi em educação e R$ 19 bi em programas sociais superestimados, como Bolsa Família e aposentadorias especiais para idosos e deficientes pobres. Não se trata, portanto, de conseguir dinheiro novo, mas de realocar o já existente: redimensionar os programas sociais para atender apenas aos necessitados e investir a maior parte em educação, o único instrumento que redime o homem da pobreza.
Todo investimento que desvia dinheiro da educação é contraproducente, mesmo o antigo Bolsa Escola na dimensão que teve no governo passado. Porque o número de crianças que não estudam porque precisam trabalhar jamais chega à casa dos milhões. O grande professor Sérgio Costa Ribeiro já mostrava no início da década de 90 que o acesso das crianças à escola era de 95%. Em média, elas passavam oito anos tentando desesperadamente estudar, mas saíam de lá sem nem de longe concluir o ensino fundamental. O que as afastava da escola não era a necessidade de trabalhar, mas a repetência, o único estímulo que os professores tinham à mão para que o aluno estudasse.
O remédio contra a repetência foi a progressão automática, mas Sérgio sempre a criticou, por considerá-la uma medida isolada, inócua. Mais importante, dizia ele, é dar autonomia às escolas, tendo como contrapartida a avaliação de desempenho dos alunos. Dotar as escolas de recursos materiais e humanos para que se tornem ao mesmo tempo atraentes e efetivas, com uma didática nova e professores estimulados e bem pagos. Mas não deixar de submetê-las a um sistema de avaliação que seja o parâmetro de tudo: a autonomia e os recursos financeiros extras da escola estariam condicionados por essa avaliação.
Sérgio morreu precocemente e o que vimos foi a adoção indiscriminada da progressão automática, sem nova didática, sem mais recursos, sem uma avaliação com resultados práticos: os professores se esforçam para ensinar, mas a escola fracassa.
Dá uma tristeza.
ALI KAMEL é jornalista.
(ali.kamel@tvglobo.com.br)
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ALI KAMEL
O Globo, 21 de março de 2006
De um tempo para cá, é comum ouvir que o problema brasileiro na educação não é dinheiro. O número mais citado é o volume de recursos investidos na educação pelo setor público (municipal, estadual e federal) como relação do PIB: o Brasil não estaria longe das maiores potências do planeta ao investir 4%. De fato, o estudo “Education at a Glance, 2005”, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostra que esse investimento é da ordem de 4,4% na Alemanha, 5,3% nos EUA, 4,4% na Austrália, 4,6% na Itália, 4,6% na Holanda e de 5,1% na média de todos os países da OCDE.
Para reforçar a tese de que investimos o necessário, passaram a nos comparar aos países que, com mais êxito, ultrapassaram a barreira do desenvolvimento com investimentos pesados em educação: a Coréia investe 4,2% do PIB, a Irlanda, 4,1%, a Espanha, 4,3%. Mesmo em relação aos nossos vizinhos latino-americanos, não fazemos feio: a Argentina gasta 3,9% de seu PIB com educação, o Chile, 4%, o México, 5,1%. Estamos, portanto, na média, seja qual for o parâmetro.
Mas os números enganam.
Parece óbvio, mas ninguém sublinha o fato de que investimentos em educação como proporção do PIB dizem pouco quando não consideramos o tamanho do PIB e o número de estudantes atendidos. Imaginemos dois países. O primeiro tem um PIB enorme e poucos estudantes; o segundo tem um PIB pequeno e milhões de estudantes. Os dois países podem investir igualmente 4% do PIB, mas, certamente, no primeiro país, os alunos terão ao seu dispor muito mais recursos. Quando esses dados são levados em conta, a posição do Brasil no ranking de países é vexatória.
Aqui, ainda segundo dados da OCDE, o investimento por aluno na primeira fase do ensino fundamental é de US$ 842 por ano; na segunda fase, é de US$ 913; e, no ensino médio, de US$ 1.008. Façamos as mesmas comparações do primeiro parágrafo. Na Alemanha, os números são, respectivamente, US$ 4.537, US$ 5.667 e US$ 9.835. Nos EUA, US$ 8.049, US$ 8.669 e US$ 9.007. Na Austrália, US$ 5.169, US$ 7.063 e US$ 7.908. Nos países da OCDE, em média, US$ 5.313, US$ 6.089 e US$ 7.121. Na comparação com aqueles países que venceram os entraves do desenvolvimento, nossa situação continua trágica. Na Coréia, os números são US$ 3.553, US$ 5.036 e US$ 6.747. Na Irlanda, US$ 4.180, US$ 5.698 e US$ 5.758. Na Espanha, US$ 4.592, para a primeira fase do ensino fundamental, e US$ 6.010, tanto para a segunda fase do ensino fundamental como para o ensino médio. Nada melhora quando nos comparamos aos nossos vizinhos. Na Argentina, os valores são US$ 1.241, US$ 1.286 e US$ 2.883. No Chile, US$ 2.211, US$ 2.217 e US$ 2.387. No México, US$ 1.467, US$ 1.477 e US$ 2.378.
Investir a mesma porcentagem do PIB em educação diz pouco, portanto.
Não se trata sequer de dizer que a comparação é indevida porque nosso custo de vida difere dos outros países: porque, na comparação com os nossos vizinhos, continuamos a perder feio no ensino básico.
No ensino superior, a situação se inverte: nós gastamos despudoradamente em excesso. No Brasil, gasta-se por aluno o equivalente a US$ 10.361 ao ano. Na Alemanha, US$ 10.999; na Austrália, US$ 12.416; e na média dos países da OCDE, US$ 10.655. Na Coréia, o custo por aluno universitário é de US$ 6.236; na Irlanda, US$ 9.808; na Espanha, US$ 8.020. Se a comparação for com os nossos vizinhos, os números são os seguintes: na Argentina, US$ 3.235; no Chile, US$ 7.023, no México, US$ 6.074.
Por que digo que há excesso? Porque, no Brasil, a relação entre o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a respectiva população de estudantes é escandalosa. Na maior parte dos países, o montante de verbas destinadas às universidades excede a proporção de alunos nelas inscritos. Na média, nos países da OCDE, 15% de todos os alunos estão nas universidades, mas o ensino superior abocanha 24% do total de verbas destinadas à educação. É normal: o ensino superior é mesmo mais caro. No Brasil, porém, vivemos um descalabro: os alunos inscritos em universidades somam apenas 2% do total de alunos, mas o ensino superior fica com 20% de todas as verbas aplicadas em educação. Não há nada nem de longe parecido em qualquer um dos países aqui mencionados.
Diante desses números, entende-se melhor por que as nossas escolas públicas do ensino fundamental não têm bibliotecas, laboratórios de ciências, laboratório de informática, acesso à internet. Entende-se também porque o professorado é uma classe cada vez menos prestigiada, que recebe um salário indigno, o que tira dele inclusive as condições de se aperfeiçoar. Entende-se fundamentalmente por que estamos perdendo a corrida para superar a pobreza e alcançar o desenvolvimento.
Mas nosso problema, de fato, não é falta de recursos, mas falta de prioridade. Repito aqui, como num mantra, o que venho escrevendo: o governo federal quer gastar este ano R$ 8 bi em educação e R$ 19 bi em programas sociais superestimados, como Bolsa Família e aposentadorias especiais para idosos e deficientes pobres. Não se trata, portanto, de conseguir dinheiro novo, mas de realocar o já existente: redimensionar os programas sociais para atender apenas aos necessitados e investir a maior parte em educação, o único instrumento que redime o homem da pobreza.
Todo investimento que desvia dinheiro da educação é contraproducente, mesmo o antigo Bolsa Escola na dimensão que teve no governo passado. Porque o número de crianças que não estudam porque precisam trabalhar jamais chega à casa dos milhões. O grande professor Sérgio Costa Ribeiro já mostrava no início da década de 90 que o acesso das crianças à escola era de 95%. Em média, elas passavam oito anos tentando desesperadamente estudar, mas saíam de lá sem nem de longe concluir o ensino fundamental. O que as afastava da escola não era a necessidade de trabalhar, mas a repetência, o único estímulo que os professores tinham à mão para que o aluno estudasse.
O remédio contra a repetência foi a progressão automática, mas Sérgio sempre a criticou, por considerá-la uma medida isolada, inócua. Mais importante, dizia ele, é dar autonomia às escolas, tendo como contrapartida a avaliação de desempenho dos alunos. Dotar as escolas de recursos materiais e humanos para que se tornem ao mesmo tempo atraentes e efetivas, com uma didática nova e professores estimulados e bem pagos. Mas não deixar de submetê-las a um sistema de avaliação que seja o parâmetro de tudo: a autonomia e os recursos financeiros extras da escola estariam condicionados por essa avaliação.
Sérgio morreu precocemente e o que vimos foi a adoção indiscriminada da progressão automática, sem nova didática, sem mais recursos, sem uma avaliação com resultados práticos: os professores se esforçam para ensinar, mas a escola fracassa.
Dá uma tristeza.
ALI KAMEL é jornalista.
(ali.kamel@tvglobo.com.br)
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