28 março 2006

311) Virtudes pouco mundanas... (uma reflexão para os que compreendem a natureza humana)

Transcrevo abaixo artigo publicado na Folha de São Paulo desta terça-feira, 28 de março de 2006, pelo embaixador José Alfredo Graça Lima, atual Consul-Geral do Brasil em Nova York:

Virtudes casadas
JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA
Folha de São Paulo, 28 de março de 2006

Há quem confunda humildade com subserviência, temeridade com coragem. Engano. Ser humilde é ter respeito pelo próximo, seja qual for seu status, sua cor, sua procedência. Ser humilde é também reconhecer que, por mais inteligentes, por mais educados, por mais ricos ou por mais poderosos que possamos ser, estamos ainda muito distantes da perfeição e sempre podemos aprender com nossos semelhantes, por mais desprovidos que sejam. Riqueza e poder, de resto, pela capacidade que têm de corromper, freqüentemente se convertem de ativo em passivo, causam dependência e apequenam a alma.
Ser humilde é, além disso, prestar serviço sem exigir reciprocidade, de maneira discreta, contida, como uma obrigação auto-imposta, mas cumprida com prazer. É, finalmente, celebrar a vitória do seu time pelos méritos dos atletas vencedores, sem tripudiar sobre os adversários e, muito menos, ferir-lhes os brios. (O futebol, parte fundamental da vida, não pode ser metáfora para a própria vida, que mais se assemelha, como entendia Shakespeare, a uma peça de teatro cuja direção obedece a princípios e regras básicos, mas que está permanentemente sujeita à improvisação derivada do exercício do livre-arbítrio).
Não se deve ser, porém, humilde de forma absoluta. Em primeiro lugar, porque inexiste, na natureza humana, o que se poderia chamar de qualidade total, se não em prejuízo do exercício de outras virtudes que se exigem para viver em harmonia dentro da sociedade. A própria justiça, como já sacavam os antigos romanos, é passível de distorção, caso ministrada sem considerar atenuantes ou sem comportar um elemento de compaixão. A humildade, da mesma forma, há que ser temperada ou moderada pela coragem, que é o sereno desprendimento na defesa dos direitos contra a irracionalidade da violência.

É coragem, e não astúcia ou sagacidade, que se requer dos que detêm posição de liderança. Coragem para ser ético

O emprego da força ou da intimidação moral não se combate, no plano pessoal, com os mesmos métodos, sob pena de agravar o mal ou de comprazer-se com a vingança. Em casos extremos, a autoridade repressora se encarregará de proteger os inocentes; também em circunstâncias excepcionais, justificar-se-á a legítima defesa. Mas, no dia-a-dia, no convívio civilizado entre pessoas que ganham a vida honestamente, o que Jesus e Gandhi pregaram e praticaram foi a resistência passiva, a não-violência, o repúdio ao revide e ao talião. Homens livres, independentes, sem nada a temer porque sem nada a dever, Jesus e Gandhi foram corajosos a ponto não só de padecer pela falta de compreensão como também de perdoar os seus algozes.
Pois a coragem está justamente em superar os próprios preconceitos e as próprias tentações, e, além de justo, ser magnânimo. Nada se perde com a remissão das ofensas; ao contrário, o perdão é ganhador, especialmente em resposta ao arrependimento. Até mesmo no comércio internacional, em que prevalece o princípio básico do equilíbrio entre direitos e obrigações, suspender concessões para compensar a violação de compromissos equivale a atirar no próprio pé, sem obter satisfação para o(s) setor(es) afetado(s). Na hipótese de uma medida violatória ter que continuar em vigor, deveria caber compensação de valor equivalente, negociada de boa-fé entre as partes interessadas.
É coragem, e não astúcia ou sagacidade, que se requer dos que detêm posição de chefia ou de liderança. Coragem pessoal para ouvir, orientar, reconhecer o erro, ser paciente, aceitar as responsabilidades e repartir os benefícios. E coragem política para arcar com as conseqüências de ser democrata, multilateral e, acima de tudo, ético.
Decisões corajosas, que visam transformar o presente para garantir o futuro, raramente são apoiadas por setores ou corporações, cujos interesses são muitas vezes imediatistas e até avessos a reformas que impliquem redução de custos e mudanças na repartição dos frutos do crescimento econômico, visando a torná-la mais eqüitativa. Mas, se são esses os objetivos permanentes de todo Estado que se respeita e que pretende ser respeitado pela comunidade das nações, é preciso estar à altura do desafio, por mais perverso que possa ser, mais adiante, o julgamento popular. Não há decisões sem riscos; é, ao mesmo tempo, saudável e gratificante proceder de forma despojada, sem expectativas de ganhos materiais ou políticos.
Virtudes não teologais -como são a fé e a esperança-, a humildade e a coragem, faces de uma só medalha, constituem, a exemplo da caridade, expressões de consideração para com o próximo, ditadas pela consciência e destituídas de segundas intenções. Tratar a si próprio com o rigor da razão e a todos com o coração humilde é a melhor receita para fortalecer o organismo e alcançar a paz de espírito.

José Alfredo Graça Lima, 60, diplomata, é cônsul-geral do Brasil em Nova York (EUA). Foi subsecretário-geral de Integração Econômica e Comercial do Ministério das Relações Exteriores (1998-2002) e chefe da Missão Permanente do Brasil junto à União Européia (2002-2005).