Ainda faz sentido a velha divisão política entre esquerda e direita?
Provavelmente não, mas a despeito de toda a evolução relativamente consensual conhecida pela humanidade, em termos de políticas econômicas e práticas democráticas, desde que esses dois conceitos – e a realidade que eles exprimem – foram criados, no contexto da Revolução francesa, na década final do século XVIII, o fato a ser ainda inquestionavelmente reconhecido é que essa divisão persiste.
De certa forma, ela se aprofunda em certos países. Não em todos, certamente, mas em vários de tradição social e sindical mais “confrontacionista”, os conceitos e os alinhamentos políticos dela derivados ainda encontram forte respaldo nos cenários políticos, em especial na Europa e na América Latina. Nos Estados Unidos e em certos países asiáticos as realidades políticas parecem bem mais matizadas, tornando virtualmente impossível a classificação dos grupos segunda a divisão clássica esquerda versus direita. Em relação aos EUA, observadores estrangeiros acreditam que os democratas estariam mais à esquerda – em função, provavelmente de sua maior vinculação com os meios sindicais e com as políticas ditas de ação afirmativa – e os republicanos – identificados com o “grande capital” – seriam os representantes da “direita”, mas isso não faz o menor sentido para quem conhece a realidade social e política daquele país.
Resta que, na Europa e na América Latina, sobretudo, grupos partidários, escolas de pensamento econômico e atores sociais continuam a se situar num espectro político que vai da extrema esquerda à direita conservadora, estes bem mais na Europa do que na América Latina, onde ninguém quer ser, honestamente, de direita ou conservador. Mesmo os liberais pró-mercado chegam a reconhecer, entre nós, a necessidade do Estado, em vista das “desigualdades sociais”.
Aqui parece estar, precisamente, a raiz da divisão histórica, ou clássica, que ainda justifica a existência desses dois agrupamentos genéricos (dentro dos quais se encontram as diversas “seitas” pertencentes à família maior): a esquerda reivindica a si mesma uma identificação com a resolução de determinados problemas sociais via forte atuação do Estado e políticas indutoras de transformação, ao contrário dos “liberais”, ou direitistas, que confiariam mais nas forças de mercado para que essa correção se faça.
O tema ainda voltou à baila, a partir das eleições ocorridas na América Latina no período recente, quando líderes identificados com as “causas populares” foram eleitos com ampla maioria de votos. Falou-se de uma “esquerdização” na América Latina, cujo sentido foi assim expresso por uma autoridade política:
“O que há, sem dúvida nenhuma, é uma tendência de governos mais comprometidos com reformas sociais, com maior autonomia em relação às grandes potências do mundo e maior vontade de integração regional. Se você identificar esquerda com a visão de progresso, reforma social, democracia e com forte defesa dos interesses nacionais, a resposta à sua pergunta é sim.” (entrevista da jornalista Eliane Cantanhêde com o chanceler Celso Amorim, Folha de São Paulo, 23.01.06).
A julgar por esse tipo de resposta, a identidade da esquerda se resumiria, portanto, na visão de progresso, na reforma social, na democracia e na defesa dos interesses nacionais, com defesa da autonomia em relação às potências mundiais. Mas, se questionarmos algum dirigente liberal, ou mesmo conservador, ele certamente não se oporia a nenhum desses objetivos, dizendo que ele também é favorável a reformas sociais, desde que preservados os princípios básicos da economia de mercado, da livre iniciativa, da autonomia das partes em regimes puramente contratuais – isto é, com interferência mínima nas relações trabalhistas, por exemplo –, princípios estes que raramente seriam lembrados por algum dirigente de “esquerda”. Ele ainda poderia agregar que é também favorável à abertura econômica, ao acolhimento ao capital estrangeiro, à liberalização do comércio, elementos que dificilmente poderiam ser encontrados num discurso da esquerda.
Os elementos principais que separam a esquerda da direita, assim, poderiam ser identificados mais com o ideário econômico, do que com as formas de organização política. Com raríssimas exceções, poucos hoje em dia ousariam defender a “ditadura do proletariado” ou um regime político dividido claramente em classes “dominantes” e classes “dominadas”, sendo que aquelas estariam representadas pela burguesia e pelos latifundiários, obviamente. Mas, melhor do que tentar interpretar o pensamento da esquerda, uma vez que apenas ela parece reivindicar ainda este rótulo, seria o ato de dar-lhe diretamente a palavra, para que ela mesma exponha as suas posições.
Num recente documento do Partido dos Trabalhadores (PT), preparado para expor suas idéias e razões no Fórum Social Mundial de Caracas (24 a 29 de janeiro de 2006), lê-se claramente a auto-designação desse partido como sendo de esquerda:
“A nova direção nacional do PT, eleita no dia 18 de setembro de 2005, tem plena consciência do que está em jogo, tanto para o Brasil quanto para a América Latina: não permitiremos o retorno, ao governo federal, de partidos comprometidos com o ideário neoliberal, com os interesses do capital financeiro e dos Estados Unidos. Por isto mesmo, o Partido dos Trabalhadores envidará todos os seus esforços para que a esquerda saia vitoriosa nas eleições de 2006.”
E como a esquerda deve sair vitoriosa em 2006? Em primeiro lugar construindo uma “alternativa ao modelo neoliberal”, mas essa alternativa, tanto quanto o “modelo” não se encontram explicitados em nenhum lugar do texto. Outros elementos aparecem mais adiante, ao pretender o PT “conduzir a reforma do Estado, estabelecendo mecanismos de controle social, implementando mecanismos de democracia direta e participação popular”. Ainda no terreno econômico, o que se quer é “crescer distribuindo renda e riqueza, com inflação e juros compatíveis com uma sociedade livre da ditadura dos interesses financeiros. Recusamos em absoluto as propostas que visam reduzir os gastos sociais (como a proposta de ‘déficit zero’). Do que necessitamos é aprimorar a gestão do Estado para ampliar os investimentos públicos e os gastos sociais”.
Creio que aí estão resumidas algumas das idéias econômicas da esquerda, pelo seu mais abalizado partido de massas no Brasil. A partir daí se pode, portanto, traçar um pequeno quadro do que separa, ainda, a esquerda da direita no Brasil (e, em grande medida, na América Latina).
O primeiro elemento a ser aqui notado, na caracterização das diferenças entre esquerda e direita, seria que a primeira é “instintivamente” anti-capitalista, ainda que pouca gente na esquerda, atualmente, acredite, que se vá conseguir “liquidar”, de fato, com o chamado “modo de produção capitalista”. A esquerda continua a xingar o capitalismo e a acusá-lo das piores perversões sociais, mas uma vez no poder se contenta apenas em administrar o capitalismo realmente existente.
Ou seja, a esquerda só é socialista da boca para fora, como rótulo cômodo, ou ainda para retomar uma velha tradição de lutas sociais que supostamente está identificada com o combate às mazelas da época “gloriosa” do capitalismo manchesteriano, quando a burguesia triunfante tratava o proletariado como modernos escravos das galés, e ostentava sua riqueza fumando charutos sobre um saco de dinheiro (esta é, pelo menos, a imagem clássica do capitalista sem alma).
O que a esquerda consegue ser, de fato, é estatizante, por acreditar, sinceramente, que o Estado é um instrumento útil e mesmo necessário para a correção dessas mazelas sociais criadas pelo capitalismo, a começar pela desigualdade distributiva e pela existência de “desequilíbrios de mercado”, que importa corrigir pela mão sempre lúcida do planejador social. Trata-se aqui do principal divisor de águas entre a esquerda e a direita, uma vez que esta última é mais propensa a acreditar nas soluções de mercado, como o meio mais justo, e inerentemente mais racional e eficiente, para redistribuir ganhos derivados do esforço individual.
Sim, aqui aparece outra característica distintiva: a esquerda é coletivista ou “social”, enquanto a direita prefere as liberdades individuais e a liberdade de iniciativa, com retenção de ganhos para o detentor dos “meios de produção”, ao passo que a esquerda privilegia a redistribuição da “riqueza social”.
No plano político, “mecanismos de controle social, implementando mecanismos de democracia direta e participação popular”, como expresso no documento do PT, soa como heresia aos ouvidos da direita, que prefere apenas a “democracia pura”, que a esquerda chama de “formal” ou “burguesa”, pretendendo, então, dar-lhe conteúdo social ou econômico.
Estes são, creio, os elementos centrais da tradicional divisão entre esquerda e direita. Como vivemos em regimes de escassez e de fortes desigualdades distributivas, que a esquerda atribui às estruturas inerentemente injustas da sociedade capitalista, e que a direita apenas credita a mecanismos de mercado, essa divisão promete continuar no futuro previsível, sem que alguma conciliação seja possível entre linhas tão díspares de concepção do mundo e da sociedade.
Restaria, então, para aprofundar o debate, examinar a consistência intrínseca e a validade empírica – isto é, submetida ao teste da realidade – das propostas respectivas da esquerda e da direita para a resolução (pacífica, entenda-se, uma vez que as revoluções não são planejadas, mas simplesmente ocorrem) desses contenciosos que não são apenas filosóficos, mas têm a ver com a própria organização política, social e econômica das sociedades humanas.
Essa tarefa fica, entretanto, para uma próxima oportunidade...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de janeiro de 2006